Ao estudar a luz emitida por uma
estrela de nêutrons extraordinariamente densa e fortemente magnetizada usando o
Very Large Telescope do ESO, os astrônomos podem ter encontrado as primeiras
indicações observacionais de um estranho efeito quântico, previsto pela
primeira vez na década de 1930. A polarização da luz observada sugere que o
espaço vazio ao redor da estrela de nêutrons está sujeito a um efeito quântico
conhecido como birrefringência do vácuo. E, de quebra, eles empurram os limites
da tecnologia dos telescópios atuais, que já são de tecnologia altamente
sofisticada, para um pouco mais adiante.
A
birrefringência é um fenômeno que consiste na criação de dois
raios refratados a partir de um único raio inicial, quando esse incide sobre um
meio anisotrópico (p.ex., um cristal de calcita). Anisotropia é a
característica que uma substância possui em que uma certa propriedade física
varia com a direção — é normal designar qual a propriedade em que existe a
anisotropia, por exemplo,
anisotropia elétrica, óptica, magnética. Especulava-se que
a birrefringência ocorria no vácuo.
A polarização da luz no
vácuo na presença de campos magnéticos fortes foi pensada inicialmente na
década de 1930 pelos físicos Werner Heisenberg e Hans Heinrich
Euler como um produto da Teoria da
Eletrodinâmica Quântica (EDQ ou QED). A teoria descreve como a luz e
a matéria interagem. Pela primeira vez esse estranho efeito quântico foi
observado por uma equipe de cientistas liderada por Roberto Mignani, do INAF
Milão, Itália, e da Universidade de Zielona Gora, Polônia.
A birrefringência foi observada
em torno de RX J1856.5-375, uma estrela de nêutrons que está a cerca de 400
anos-luz da Terra, usando o Very Large Telescope (VLT) do European Southern Observatory (ESO).
Ocorre que nas proximidades da estrela de nêutrons, que é cercada por
um campo magnético muito intenso, é encontrada uma região de vácuo no
espaço (justamente devido ao campo magnético da estrela de nêutrons), onde
a matéria aparece e desaparece aleatoriamente, segundo as leis da física
quântica.
Apesar de estar entre as estrelas
de nêutrons mais próximas, a RX J1856.5-375 de tamanho extremamente
diminuto significava que os astrônomos só podiam observar a estrela com
luz visível usando o instrumento FORS2 no VLT, nos limites da tecnologia atual
do telescópio.
As estrelas de nêutrons são os
núcleos remanescentes muito densos das estrelas maciças — pelo menos
oito vezes mais massivas do que o nosso Sol — que explodiram como
supernovas no final de suas vidas. Elas também têm campos magnéticos extremos,
bilhões de vezes mais fortes do que o do Sol, que permeiam sua superfície
externa e seus arredores.
Estrelas de
Nêutrons
Uma estrela de
nêutrons é o núcleo colapsado de uma estrela grande (de 10 a 29
massas solares). As estrelas de nêutrons são as estrelas mais pequenas e mais
densas que se sabe existir. Embora geralmente tenham um raio na
ordem de dez a quinze quilômetros, elas podem ter massas de cerca de uma vez e
meia a duas vezes a do Sol. Esses núcleos das estrelas de
nêutrons resultam da explosão de uma estrela maciça em uma supernova,
combinada com o colapso gravitacional, que comprime o núcleo remanesce em
estrela anã branca a uma densidade equivalente a dos núcleos atômicos — o que
comprime prótons e elétrons até que se tornem nêutrons. Assim, maioria dos
modelos básicos para esses objetos implica que as estrelas de nêutrons são
compostas quase que inteiramente de nêutrons, que são partículas subatômicas
sem carga elétrica líquida e com massa ligeiramente maior que a
dos prótons. Eles são mantidos contra um colapso adicional pela
pressão de degeneração dos nêutrons, um fenômeno descrito pelo Princípio de
Exclusão de Pauli. Se o núcleo remanescente da explosão da supernova
contiver uma densidade grande o suficiente, algo que ocorre quando ultrapassa o
limite superior do tamanho das estrelas de nêutrons de duas a
três massas solares, ele continuará a ser compactado para formar um buraco
negro. As estrelas de nêutrons são bastante fracas para isso, mas são duas
vezes mais massivas do que o Sol. Como tal, elas têm campos magnéticos
extremamente fortes permeando sua superfície e arredores.
Os vácuos são espaços
supostamente vazios (de acordo com Einstein e Newton, pelo menos), onde a luz
pode passar desimpedida. Mas, de acordo com a QED, o espaço está cheio de
partículas virtuais que continuamente surgem e desaparecem. Campos magnéticos
muito fortes, como aqueles que cercam estrelas de nêutrons, podem modificar o
espaço tornando-o um vácuo perfeito. Usando o instrumento FORS2 no
VLT, os pesquisadores conseguiram observar a estrela de nêutrons apenas
com luz visível.
Esta concepção artística mostra como é que a
radiação emitida pela estrela de nêutrons fortemente magnetizada (à esquerda)
se polariza linearmente à medida que viaja através do vácuo do espaço que
envolve a estrela no seu percurso até chegar à Terra (à direita). A polarização
da radiação observada no campo magnético extremamente forte sugere que o espaço
vazio que rodeia a estrela de nêutrons está sujeito a um efeito quântico
chamado birrefringência do vácuo, uma previsão da eletrodinâmica quântica. Este
efeito foi previsto nos anos 1930 mas nunca foi observado até agora. As
direções dos campos magnético e elétrico estão marcadas com linhas vermelhas e
azuis. Simulações de modelos obtidas por Roberto Taverna (Universidade de
Pádua, Itália) e Denis Gonzalez Caniulef (UCL/MSSL, RU) mostram como estas se
alinham ao longo de uma direção preferencial quando a radiação passa pela
região em torno da estrela de nêutrons. Créditos: ESO/L. Calçada
O VLT e o
VLTI
O conjunto Very Large Telescope
(VLT) é um emblemático instrumento da astronomia. Trata-se do
telescópio óptico mais avançado do mundo, com uma unidade telescópica
composta por quatro telescópios menores, com espelhos principais de 8,2 m de
diâmetro e quatro telescópios auxiliares móveis de 1,8 m de diâmetro. Os
grandes telescópios são chamados Antu, Kueyen, Melipal e Yepun. Os telescópios
podem trabalhar juntos, formando um “interferômetro” gigante, o Interferômetro
do Very Large Telescope (VLTI), permitindo que os astrônomos vejam
detalhes até 25 vezes menores que os telescópios individuais. Os feixes de
luz são combinados no VLTI usando um sistema complexo de espelhos em túneis
subterrâneos, onde os caminhos da luz devem ser mantidos iguais a distâncias
inferiores a 1/1000 mm sobre uma centena de metros. Com este tipo de precisão,
o VLTI pode reconstruir imagens com uma resolução angular de milisegundos, o
que equivale a distinguir dois faróis de um carro à distância da Lua.
Os telescópios da unidade de 8,2
m de diâmetro também podem ser usados individualmente. Com um desses
telescópios, as imagens de objetos celestes tão fracos como a magnitude
trinta podem ser obtidas em uma exposição de uma hora. Isso corresponde a
ver objetos que são quatro bilhões de vezes mais fracos do que o que pode ser
visto a olho nu.
O FORS2 do
VLT no Cerro Paranal
“De todos os instrumentos no
Paranal, esse é o canivete suíço do ESO”. Essa é a forma como Henri Boffin, o
cientista por trás do instrumento de baixa dispersão focal ou FOcal Reducer
and low dispersion Spectrograph 2 (FORS2), descreve o instrumento
mais procurado no Observatório Paranal da ESO, situado no alto do Cerro Paranal, no deserto
do Atacama, Chile. A chave para o sucesso é que FORS2, instalado no telescópio
UT1 (Antu) do VLT, é capaz de estudar muitos objetos astronômicos diferentes de
muitas maneiras diferentes. Por exemplo, ele pode tirar imagens de áreas
relativamente grandes do céu com sensibilidade muito alta. Não é de admirar que
algumas das fotos mais icônicas tiradas com o VLT usaram este instrumento.
Mas o FORS2 também pode
obter espectros de um, dois ou mesmo várias dezenas de objetos no céu
simultaneamente. “Quando usado como um espectrógrafo, o FORS2 dispersa a luz em
um espectro muito sofisticado que ajuda os astrônomos a estudar a
composição química ou estimar as distâncias de objetos remotos”, diz
Boffin. O FORS2 também pode medir a polarização da luz e, portanto, é
usado no VLT para determinar se alguns objetos astronômicos possuem campos
magnéticos fortes. E foi essa habilidade do equipamento que permitiu aos
astrônomos constatarem a birrefringência do vácuo.
Melhores
Telescópios
Estudando dados do VLT na estrela
de nêutron, os pesquisadores viram a polarização linear ocorrer em um grau
significativo, de cerca de 16%. Isso muito provavelmente se deve à
birrefringência a vácuo na área que rodeia RX J1856.5-375.
Os campos magnéticos nesses
corpos são tão fortes que afetam as propriedades do espaço vazio ao redor da
estrela. Normalmente, um vácuo é pensado como completamente vazio, e a luz pode
percorrê-lo sem ser alterada. Mas na eletrodinâmica quântica (QED), a teoria
quântica descrevendo a interação entre fótons e partículas carregadas, como
elétrons, o espaço está cheio de partículas virtuais que aparecem e desaparecem
o tempo todo. Campos magnéticos muito fortes podem modificar este espaço de
modo que afete a polarização da luz passando por ele.
“De acordo com a QED, um vácuo
altamente magnetizado se comporta como um prisma para a propagação da luz, um
efeito conhecido como birrefringência a vácuo”, explica Mignani. “A alta
[polarização] linear que medimos com o VLT não pode ser explicada facilmente
por nossos modelos, a menos que os efeitos de birrefringência do vácuo
previstos pela QED sejam incluídos”.
“Este efeito só pode ser
detectado na presença de campos magnéticos extremamente fortes, como os que
estão ao redor das estrelas de nêutrons. Isso mostra, mais uma vez, que as
estrelas de nêutrons são laboratórios inestimáveis para estudar as leis
fundamentais da natureza”, diz Roberto Turolla (Universidade de Pádua, Itália).
Esta ampla imagem mostra o céu em torno da muito
fraca estrela de nêutrons RX J1856.5-3754 ao sul da constelação de Corona
Australis. Esta parte do céu também contém regiões interessantes de nebulosa
escura e brilhante que cercam a estrela variável R Coronae Australis (superior
esquerda), bem como o conjunto de estrelas globulares NGC 6723. A própria
estrela de nêutrons é muito fraca para ser vista aqui, mas está muito próxima
do centro da imagem. Este objeto faz parte do grupo de estrelas de nêutrons
conhecido como o Magnífico Sete. Eles são conhecidos como estrelas de nêutrons
isoladas (isolated neutron stars – INS), que não possuem companheiros
estelares, não emite ondas de rádio (como pulsares) e não são cercadas por
material supernova progenitor. Créditos: ESO//Digitized Sky Survey
2. Acknowledgement: Davide De Martin
Após uma análise cuidadosa dos
dados VLT, Mignani e sua equipe detectaram polarização linear – em um grau
significativo de cerca de 16% – que eles dizem é provavelmente devido ao efeito
impulsionador da birrefringência a vácuo que ocorre na área do espaço vazio em
torno de RX J1856.5 -3754.
Vincenzo Testa (INAF, Roma,
Itália) comenta: “Este é o objeto mais fraco para o qual a polarização já foi
medida. Requer um dos maiores e mais eficientes telescópios do mundo, o VLT, e
técnicas de análise de dados precisas para melhorar o sinal de uma estrela tão
fraca”.
“Esta medida, feita pela primeira
vez agora em luz visível, também abre caminho para medidas semelhantes a serem
realizadas em comprimentos de raios X”, disse o pesquisador Kinwah Wu.
“Este estudo com o VLT é o
primeiro suporte observacional para as previsões desses tipos de efeitos QED
que surgem em campos magnéticos extremamente fortes”, observa a pesquisadora
Silvia Zane (UCL / MSSL, Inglaterra).
Dada as limitações tecnológicas
atuais, Mignani acredita que os telescópios futuros podem descobrir mais sobre
os estranhos efeitos quânticos similares ao estudar outras estrelas de
nêutrons. “As medições de polarização com a próxima geração de telescópios,
como o telescópio European Extremely Large Telescope (EELT) da ESO, podem
desempenhar um papel crucial no teste das previsões QED de efeitos de
birrefringência de vácuo em torno de muitas mais estrelas de nêutrons”,
afirmou.
Existem outros processos que
podem polarizar a luz das estrelas à medida que viaja pelo espaço. A equipe
analisou cuidadosamente outras possibilidades — por exemplo, a polarização
criada pela dispersão de grãos de poeira —, mas consideram improvável que elas
produzam o sinal de polarização observado. O estudo foi
publicado pelo ESO.
Esperamos que você tenha gostado desta informação! Caso queira debater ou tenha alguma dúvida referente ao assunto, será um prazer recebê-lo na sala de física, estamos lhe aguardando!
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